- E ai, a gente fo...fa...fi...vi...sabe, quando a gente foi, ai o moço aquele moço pergun...par...po... – a pequena gaguejava e a cada tentativa o rosto ficava mais corado, a voz mais alta, parecia irritada.
- “Filha, que é isso? O que está tentando dizer? Se você não se acalmar, vai comer palavras e eu não consigo entender”. – tentou mediar a mãe.
A menina se calou. Ficou pensando no que a mãe havia dito, nisso de “comer palavras”. Ouviu o estômago roncar.
- “Nossa, que barulhão!” – riu a mãe. – “Tudo isso é fome? Espera aqui que vou servir o jantar”.
A menina e a mãe jantaram. De barriguinha cheia, dentes escovados, pijama quentinho e beijo de boa noite na testa, a pequena foi encontrar o sono. Naquela noite sonhou que era um dinossauro gigante, com os braços bem curtinhos, quase não se via as mãos, mas com uma boca enorme de jacaré que papava tudo que encontrava. A fome era tamanha que começou comendo letras, depois palavras e quando se deu conta, eram frases inteiras. Comeu até dar dor de barriga. Ao final da copiosa refeição, sentou e arrotou ruídos que pareciam uivos. Seguiu-se o silêncio. Num primeiro momento gostou da quietude. Tudo estava tão quieto que conseguia ouvir seus pensamentos. Nem sabia que dinossauro pensava! E não eram quaisquer pensamentos. Eram bons, gostou deles. Pensou em várias brincadeiras divertidas, ideias geniais e segredos inconfessáveis. A barriga parecia já estar digerindo o conteúdo ingerido e aos poucos a solidão começou a se presentificar. A quietude continuava lá. Nenhuma palavrinha, fonema, silaba, nada, nadinha. Silêncio dos brabos. Sentiu uma ponta de tédio. Bocejou e aí se deu conta que não emitia som. Assustou-se. Tentou bocejar novamente e agora fazia força para cortar o silêncio. Nada. Tentou falar, não conseguiu. Gritou, sua voz havia desaparecido, só saiu ar. Olhou para seu corpo e não era mais um dinossauro gigante. Era ela que estava ali e seu corpinho pequeno coberto pelo pijaminha. Tentou chamar pela mãe, mas a mudez não permitia. Angustiada saiu correndo. Não sabia para onde ia, mas não podia continuar ali sentada, era pequena, estava muda, estava sozinha, alguém maior, alguém que falasse precisava ajudá-la. Sentiu-se culpada. Sua gula em comer todas as palavras que existiam deixou-a sozinha no silêncio. Voltou-se aos pensamentos. Eles gritavam desesperadamente, sem nexo, pediam ajuda. A menina precisava fazer alguma coisa. Deitou-se, enrolou-se sobre si e tentou chorar. Lágrimas escorreram, mas o som que habitualmente as acompanhava já não estava lá. Decidiu abandonar os pensamentos à própria sorte e se entregar àquele vazio. Dormiu. Acordou no outro dia pela manhã. Sua mãe a chamava para o café, já era tarde, hora de levantar. Trocou o pijama pela roupa do dia, lavou o rosto e foi tomar café. A mãe como de costume lhe perguntou:
- Com o que você sonhou essa noite, minha pequena?
- Sonhei que era um dinossauro gigante e que comia todas as palavras do mundo. Comi frases inteiras! E ai me deu dor de barriga. Fiquei triste e sozinha e tentei te chamar, mas não podia me escutar. – contou cabisbaixa.
- Ah filha, que sonho difícil. E o que você fez quando percebeu que estava sozinha?
- Deitei, fiquei quietinha e dormi. Era o que eu podia.
- Sim, entendo. Isso já aconteceu comigo. As palavras por vezes faltam e não sabemos o que fazer. Dá mesmo vontade de deitar e esperar passar.
- É.
- Não é uma ideia ruim, esperar um pouco e respeitar o silêncio. Mas como sou grande, descobri algumas coisas já sobre isso. Quer que eu te conte?
- Queroooo! – respondeu a menina animada.
- Então, costumo esperar um pouco. Quando a gente se afoba com as palavras, dor de barriga é um dos efeitos possíveis. Aí espero digerir um pouco e fico bem quietinha, como você fez no sonho. Tento me manter acordada, porque sei que, se tiver paciência, devagarinho, eu vou descobrindo o que devo fazer.
- As palavras voltam?
- Sim, elas sempre voltam. Mas não é disso que se trata. O que eu espero é que meu corpo refeito, depois da dor, me aponte o que quero fazer.
- O corpo diz o que a gente quer fazer?
- O corpo sabe, ele sempre sabe. As palavras são boas, nos distraem e nos alimentam. Mas quem sabe é o corpo.