terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Dívida

Escolho homenagear esse buraco dilacerado que você deixou em mim. Assim, despedaçada, um monte de coisas pequenas e frágeis, de uma tristeza que o vento não leva porque é leviano. Isso, esse resto, anda por aí, imitando algo que parece gente, mas se arrasta, repete, por vezes até ri, só desespero. Sentir-me assim, viver não, existir assim covardemente, sem pegar a putamerda da vida pelos cabelos é a escolha que não cesso de fazer. Para que serve? Serve para quem eu escolhi homenagear. A cada desistência, procrastinação, corpo jogado esperando um novo (e sempre o mesmo) senhor para servir é o que eu continuo escolhendo. Deixar ir, o buraco não, esse é meu e ninguém tasca, mas permitir que ele possa ser preenchido e esvaziado, preenchido e esvaziado, deixar ele pulsar e permitir que a oferenda aos mortos seja dada como despedida, sepultada por fim...dar adeus, caminar sin pensamientos. Permitir que o prazer possa fazer do meu corpo festa, beleza, amorosidade. É só isso. Abrir mão, deixar ir e ser. Difícil é desejar sem pagar a dívida.

terça-feira, 2 de junho de 2020

Ao menos amenas

Por que essa mania de achar
Que a alegria não produz poesia?
Que coisa é essa que faz da vida
Essa úmida sangria
Uma necessidade de sempre
Ou quando fazer lágrimas
para garantir rimas?
Não sei não, na verdade
Se é que ela existe
Cada vez sei menos
Tenho preferido as sensações
Amenas, ainda que efêmeras
Do que as rimas perfeitas
Que as tristezas fazem.

sexta-feira, 29 de maio de 2020

A menina que comia palavras

- E ai, a gente fo...fa...fi...vi...sabe, quando a gente foi, ai o moço aquele moço pergun...par...po... – a pequena gaguejava e a cada tentativa o rosto ficava mais corado, a voz mais alta, parecia irritada. 
- “Filha, que é isso? O que está tentando dizer? Se você não se acalmar, vai comer palavras e eu não consigo entender”. – tentou mediar a mãe.
A menina se calou. Ficou pensando no que a mãe havia dito, nisso de “comer palavras”. Ouviu o estômago roncar.
- “Nossa, que barulhão!” – riu a mãe. – “Tudo isso é fome? Espera aqui que vou servir o jantar”.
A menina e a mãe jantaram. De barriguinha cheia, dentes escovados, pijama quentinho e beijo de boa noite na testa, a pequena foi encontrar o sono. Naquela noite sonhou que era um dinossauro gigante, com os braços bem curtinhos, quase não se via as mãos, mas com uma boca enorme de jacaré que papava tudo que encontrava. A fome era tamanha que começou comendo letras, depois palavras e quando se deu conta, eram frases inteiras. Comeu até dar dor de barriga. Ao final da copiosa refeição, sentou e arrotou ruídos que pareciam uivos. Seguiu-se o silêncio. Num primeiro momento gostou da quietude. Tudo estava tão quieto que conseguia ouvir seus pensamentos. Nem sabia que dinossauro pensava! E não eram quaisquer pensamentos. Eram bons, gostou deles. Pensou em várias brincadeiras divertidas, ideias geniais e segredos inconfessáveis. A barriga parecia já estar digerindo o conteúdo ingerido e aos poucos a solidão começou a se presentificar. A quietude continuava lá. Nenhuma palavrinha, fonema, silaba, nada, nadinha. Silêncio dos brabos. Sentiu uma ponta de tédio. Bocejou e aí se deu conta que não emitia som. Assustou-se. Tentou bocejar novamente e agora fazia força para cortar o silêncio. Nada. Tentou falar, não conseguiu. Gritou, sua voz havia desaparecido, só saiu ar. Olhou para seu corpo e não era mais um dinossauro gigante. Era ela que estava ali e seu corpinho pequeno coberto pelo pijaminha. Tentou chamar pela mãe, mas a mudez não permitia. Angustiada saiu correndo. Não sabia para onde ia, mas não podia continuar ali sentada, era pequena, estava muda, estava sozinha, alguém maior, alguém que falasse precisava ajudá-la. Sentiu-se culpada. Sua gula em comer todas as palavras que existiam deixou-a sozinha no silêncio. Voltou-se aos pensamentos. Eles gritavam desesperadamente, sem nexo, pediam ajuda. A menina precisava fazer alguma coisa. Deitou-se, enrolou-se sobre si e tentou chorar. Lágrimas escorreram, mas o som que habitualmente as acompanhava já não estava lá. Decidiu abandonar os pensamentos à própria sorte e se entregar àquele vazio. Dormiu. Acordou no outro dia pela manhã. Sua mãe a chamava para o café, já era tarde, hora de levantar. Trocou o pijama pela roupa do dia, lavou o rosto e foi tomar café. A mãe como de costume lhe perguntou: 
- Com o que você sonhou essa noite, minha pequena?
- Sonhei que era um dinossauro gigante e que comia todas as palavras do mundo. Comi frases inteiras! E ai me deu dor de barriga. Fiquei triste e sozinha e tentei te chamar, mas não podia me escutar. – contou cabisbaixa.
- Ah filha, que sonho difícil. E o que você fez quando percebeu que estava sozinha?
- Deitei, fiquei quietinha e dormi. Era o que eu podia.
- Sim, entendo. Isso já aconteceu comigo. As palavras por vezes faltam e não sabemos o que fazer. Dá mesmo vontade de deitar e esperar passar. 
- É.
- Não é uma ideia ruim, esperar um pouco e respeitar o silêncio. Mas como sou grande, descobri algumas coisas já sobre isso. Quer que eu te conte?
- Queroooo! – respondeu a menina animada.
- Então, costumo esperar um pouco. Quando a gente se afoba com as palavras, dor de barriga é um dos efeitos possíveis. Aí espero digerir um pouco e fico bem quietinha, como você fez no sonho. Tento me manter acordada, porque sei que, se tiver paciência, devagarinho, eu vou descobrindo o que devo fazer.
- As palavras voltam?
- Sim, elas sempre voltam. Mas não é disso que se trata. O que eu espero é que meu corpo refeito, depois da dor, me aponte o que quero fazer.
- O corpo diz o que a gente quer fazer?
- O corpo sabe, ele sempre sabe. As palavras são boas, nos distraem e nos alimentam. Mas quem sabe é o corpo.

terça-feira, 5 de maio de 2020

Chega (junto)


É o momento. Vamos ter logo essa conversa, estou irritada, impaciente e você só ri, sorri esse sorriso bobo, infantil, cansei. Vamos conversar feito adultos, olhos nos olhos, frente a frente. Que isso que pensas que vai fazer de mim? Eu aqui toda à mercê de ti e o que tu me ofertas não é seguro, não é estável, não tem alianças ou garantias. Que isso que achas que vai fazer de mim? Sou uma mulher grande, pago minhas em contas em dia, compro minhas roupas, minhas comidas, sou dona de mim. Agora quer que eu abra mão das minhas certezas por essas promessas? De satisfação? Satisfação? São segundos, efêmeros, mal pisco os olhos e a sensação já acabou. O que é isso então? O que é isso? Sim, estou com muita raiva de ti. Eu era bem sucedida, tinha muitos likes, gostava dos meus selfies, a cada mordida dada, a cada deglutida bem sucedida, sentia-me plena. E se, não assim, pelo menos tinha os outros, seus favores, seus cuidados, seus amores. Devoções evocadas por minha infinda carência de atenção. Ai tu resolveste te revelar para mim. Disse-me que era a única saída para uma vida com sentido, me prometeu que a escrita, as cores, as invenções, os encontros que não demandem mais do outro do que o outro pode dar, que é na relação com esse outro que tem ideias, planos, interesses diferentes do meu é que eu e tu poderíamos existir, que seriamos uma bela dupla, desde que eu te escutasse e te respeitasse, em primeiro lugar. Me prometeste uma historia escrita por minhas próprias mãos, em primeira pessoa, com toda a dor e a entrega que isso implicaria, mas prometeste para mim que faria sentido! Cadê o sentido? Sinto dor, me sinto sozinha, estou cansada! Já te disse que não vou mais fugir dessa conversa, olha aqui. Ah, até isso tu te recusas, de me olhar. Só queres que eu te escute e que eu siga apostando. Até quando? Sinto que não consigo. Penso em desistir. O calor do sossego de receber leite de qualquer teta por ai, das tetas que eu comprar, das que eu acredite existir me acomodam, me tranquilizam e narcotizam. Quero paz! Por que tu foste inventar de se mostrar para mim? Por que esse amor que sinto por ti faz tanto sentido e ao mesmo tempo me causa tamanha dor? Sim, eu sei. Tudo depende da minha escolha. É só isso que insistes em me dizer. E pior, quando não te dou ouvidos, quando tapo orelhas, tiro meus óculos, não quero, não quero, não quero, ainda assim existes. É uma vida interessante que me ofertas né? Desafiadora? Em que a preguiça é escanteada, em que o conforto ganha outro sentido, em que o amor só existe se tu fores respeitado para assim também o outro ser respeitado. Tá, entendi. Essa conversa me irrita, porque sei que tu tens razão. Na verdade, tu passa longe dela e eu também, acho que por isso minha loucura combina tão bem com a tua. Fomos feitos um para o outro, é disso que se trata. Faz sentido. Estou um pouco mais calma, mas sei que logo estarei desacomodada e com dor. Inferno! Ainda bem que tu estás ai persistente e insistente. Grata pelos pés na bunda diários. Amanhã voltaremos a discutir, desejo. Espero que inventemos outras a partir disso.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Tristeza



Moça sóbria, presente, cantarolar baixo e ressonante
Deseja ser aprendiz, de tudo que a vida apresenta, ouvinte
Boa escuta, olhos atentos, postura expectante
Sabe tanto que, mesmo disposta, quando apresenta-se a decepção seguinte
A tristeza esboça um sorriso condescendente, quase flerta com sua irmã
Alegria, ingênua e sugestionável, dá pulinhos e pinta de cores o ar
Deixa-se capturar com facilidade, toda entregue, toda boba, toda vã
A tristeza olha com misto de admiração e previsibilidade aquele rebolar
Sabe das artimanhas da vida, ela sabe de cor, das coisas o nome
Penteia seus cabelos longos, respira profundamente e calma, espera
A alegria logo cansa, se entedia e some
A tristeza continua ali, perseverante, resoluta, sabida e vela
O fim, senhora que revela o fim.

sábado, 21 de março de 2020

À luz do gozo

Madrugada. Já foi sábado, agora domingo, essa transição que costumo passar de olhos fechados quando só e que só uma boa companhia costuma me ludibriar. Falaciosamente solitária, em realidade, já que meu turbilhão de pensamentos e seus ruídos, palavras, frases não me presenteiam com o abandono desejado. Acordada, depois de um sono restaurador nas horas iniciais da noite, graças a três taças de vinho tinto sorvidas apenas com o intuito de dispersar o fluxo reflexivo da minha mente inquieta. Deu certo. Dormí e, agora, apaziguada, me sinto excessivamente desperta. Resolvo estudar, parece-me a coisa certa a fazer considerando meu sentimento de inutilidade nesses últimos dias. O trabalho mental me absolve da culpa diante da minha imobilidade corporal. Lendo, lembro que não declarei o imposto de renda. Tenho que buscar o telefone da contadora. Agora não. Depois. Me lembro da merda da conta de luz que não paguei. Penso que se o mundo acabar, por conta do tal do vírus que me proíbe de sair de casa e me deixa assim inquieta e sedenta de conhecimento e aflita com a conta que não paguei, se o mundo acabar, a conta de luz pode esperar. Ou melhor, não será questão. O mundo não vai acabar.  Me vejo diante do sentido de viver o presente, da realidade que me atualiza da temporalidade e da terminalidade do meu corpo e mente, intuo meus batimentos cardíacos que claro não os percebo, mas que sei se repetem e me mantem aqui, viva. Preciso achar a conta de luz. Inicio a busca. Meu humor até então ameno, quase entediado diante da leitura formativa a que me dedicava e meu olhar que fazia seu papel servil de garantir a captura correta das informações, ambos ganham gravidade. A carranca faz-me lembrar, em matizes gris de uma cena distante: sentada no consultório, com meu jaleco manchado de tinta de caneta esferográfica nos bolsos, sustentando o peso do estetoscópio no meu pescoço cansado e com as unhas com esmalte descascado que dedilham a mesa enquanto pergunto ao paciente à minha frente: "em que posso te ajudar?" É com essa gravidade de solucionadora de problemas, de saúde dos outros, de DRs eloquentes e deliberativas, de catadora de pega-pegas nas meias da filha que busco a luz, digo, a conta de luz. Bom, se o leitor me conhece para além desses caracteres deve imaginar o fim óbvio dessa narrativa: não achei. Pronto, com esse spoiler posso seguir. No meio da busca, reencontrei alguns devaneios escamoteados pelo fluxo do fazer do dia e me vi diante dos livros em cima da mesinha que vive à cabeceira da minha cama e que recebem pouca ou nenhuma atenção da minha parte, livros e mesinha. Agora, quando deveria estar concentrada na tarefa grave que me propus, encontrar a conta de luz, vejo esses vizinhos de leito com especial interesse. Num primeiro momento, trata-se de descartar a possibilidade que a conta esteja ali, no meio deles, dos livros claro, se deliciando do esconderijo de suas páginas há muito não manipuladas. Mentira deslavada que nem eu, acostumada a me enganar, compro. Enganada, mas completamente seduzida pela presença das brochuras encapadas diante dos meus olhos que numa altura dessas já perderam a gravidade e são só lascívia, agarro com mãos tremulantes de desejo o primeiro livro. Pego nos demais, assim impetuosamente. Olho dentro, aperto as folhas, leio palavras soltas, sôfrega percorro frases, parágrafos, mentalmente lambo cada ideia, citação e já não mais podendo me conter, entregue, gozo. Fim. E a conta de luz? Como disse, não achei. Mas quem liga para luz numa hora dessas?

quinta-feira, 12 de março de 2020

A menina que não escutava sua voz

Era uma vez uma menina que vinha de longe, muito longe, de um passado distante e adormecido que só reaparecia nos assombros das palavras mal ditas. Antiquada nos gestos e insegura no falar, tentava sobreviver a despeito de todos os sons e ruídos do mundo ao redor. Essa menina não escutava. Sua surdez, no entanto, não era ordinária. Flertava com a loucura de tudo escutar, até o que não era dito, menos sua própria voz. Em seus raros momentos de aparição, quase como um fantasma, não assustava, ao contrário, se assustava com quase tudo que havia. O modo com as pessoas se vestiam, do que riam, o que comiam, como se comunicavam. Das vozes dos outros era povoada, algumas mais agudas, outras sussurradas, todas habitavam sua cabecinha mal acabada. Por vezes, em seu retiro, pegava-se rindo sozinha, achava tudo tão pós-moderno, adulto, mas ao mesmo tempo jovem, coisa que nunca foi e nem seria, já que era uma criança antiga. Nem sempre notavam sua presença, ora, a quem queria enganar, nunca notavam-na, e era comum lhe pisarem os pezinhos delicados com tropeções, seu corpinho se contorcia em dor com a voz impaciente de alguns adultos, mas as crianças também sabiam machucá-la. Como na história do Peter que nunca crescia, a menina também nunca envelhecia. O passar dos anos não lhe traziam rugas, cabelos brancos, nem as formas de uma mulher. Era sempre pequenina e pueril, nossa heroína surda. No começo falava, aos borbotões. De tanto não ser ouvida, da indiferença alheia e também da sua própria com seus ouvidos ineptos, foi se calando. Entediada, decidiu recolher-se também dos atos. De que adiantava agir se não se ouvia? Assim, repetia. Sentada comodamente à janela do movimento dos dias, decidiu que iria apenas contemplar, olhar a paisagem intensa da vida. Depois do tédio, veio o sofrimento. Sentia uma energia crescente dentro de si, mas desabilitada do ouvir, falar e fazer, não sabia como mediar tamanha dor. E então, um belo dia, decidiu que iria fazer sem saber. O assento que passara a ser incômodo lhe obrigava a ir, a viver. Nos primeiros dias, achou que pedir, exigir, demandar era mesmo a melhor saída. Resolveu gritar e, para sua surpresa, a voz era audível e muitas pararam para escutá-la. Sentiu-se poderosa, mesmo surda, recuperou sua fala e agora dizia tudo o que dos outros queria: "muitas balas e chocolates. Não! esse não! quero também ser levada na praia, não, nessa não! quero só dormir e você me cuidar, não, assim, não!" Viu-se diante da raiva, da frustração de não lhe servirem como queria e voltou à insatisfação. Com a barriguinha estufada de certezas, olhou ao redor e estava só. Triste e só. Aqueles que responderam à sua fala, cansaram de suas demandas e a deixaram-na lá, com suas coisas e  tédio. Não lembra nem como, nem porque, mas foi nesses dias sem sentido que lembrou do barulho do mar e do encanto mágico que sentia no seu corpo o vai e vem das ondas a lhe embalar. Pegou suas pequenas roupinhas que também eram azuis e foi com ele encontrar. Mergulhou, mergulhou, mergulhou. Viu peixinhos, seus olhinhos pequenos arderam com o sal e, por fim, com os olhinhos fechados, que agora faziam companhia para sua boca calada e seus ouvidos tapados, sentiu. A sensação era nova, um corpo meio solto, parecia que ia cair e se afogar. Assustada pensou em sair dali e um abrigo seco procurar. No meio da inquietação uma onda a derrubou e no caos ela se lançou. Um pensamento aflitivo lhe sobressaltou, 'não quero morrer!' e aí desandou a gargalhar. Pela primeira vez escutou sua própria voz e era o som da sua risada. Sim, ela estava lá. A menina olhou para o seu corpo que subitamente ganhava formas e sentia-se como uma borboleta vivendo ali seu transformar. As gargalhadas foram diminuindo de intensidade e o corpo agora era o de uma mulher. Saiu do mar e sentiu o seu quadril rebolar. Sorriu serenamente e sentiu a leveza de ter uma voz e de ter ouvidos para escutar. Poderíamos, nessa altura da história, dizer que a menina, agora mulher viveu feliz para sempre. Não foi isso que aconteceu, felizmente. Para sempre é muito tempo e felicidade é construção cotidiana que rima esforço e distração, assim, numa mesma conexão. Alegre sim, a menina se sentia sempre que se ouvia e, quando não podia, ia ver o mar.