Relaxa, não estamos em
guerra. Isso, solta os ombros, respira um pouco mais profundo. Veja. O feio, o
mau e o errado não irão destruir você. Ah, de injustiças é feita a civilidade,
de malvadeza está cheia a cidade, tem razão. O coração dos homens há muito
ganhou membrana pétrea, um pericárdio áspero. Corpos cheios de membranas
endurecidas. Contratilidades restritas, respirações rasas, olhos míopes e
ouvidos hipoacúsicos. Como dizia o Rei, todos estão surdos. Concordo, estamos
perdendo a afetação do sensível. O mundo é hostil, a vida injusta e você
morrerá sozinho. Tá bem, é isso mesmo. Ainda assim, para quê servem essas
defesas? Aonde você vai com essa carranca tesa que não tira, nem no banho ou na
cama? Para quê esses punhos fechados, esses dentes cerrados e os sapatos
apertados? De onde vem o insulto que justifica o seu armamento pesado? A defesa
não é o melhor ataque. Fecha os olhos. Lembra a tranquilidade dos dias
iluminados, do afago morno deslizando nos cabelos, da bebida quente acariciando
as mucosas e confortando o estômago, do algodão macio e perfumado abraçando a
pele. Interrompe a corrida e percebe os pés tocando o chão suavemente. Sinta o
alívio dos músculos, a tez leve e o espreguiçar dos dedos. Pega um espelho e
encara a imagem refletida...O desejo narcisista caducou. A vida é mais. Medos
desnudados convidam encontros e entregas. A sensibilidade pode ser uma poderosa
arma de guerra.
terça-feira, 14 de maio de 2013
domingo, 12 de maio de 2013
Sobre a culpa
Culpa.
Palavra bonita. Começa mal, é verdade. Tem um levantar de língua em seguida e
termina estrondosa, abrupta - pá! Se não fosse tão popular, passaria fácil por
nome de flor. "Me vê um buquê de culpas, por favor". Tem gente que
diz que graças à culpa a sociedade sobrevive, mal, mas sobrevive. Imaginem uma
sociedade sem culpa?! Todos mortos, assassinados, estuprados, violentados...a
culpa é o interdito da barbárie. E um ser vivente sem culpa? Psicopata,
anti-social, é claro, um pária, escória...pior, ameaça! Como coibir o ímpeto
destrutivo de alguém sem culpa? Melhor não imaginar... Por isso, irmãos,
sigamos culpados! Culpados pela dor que causamos, pelo amor que não damos, por
todas as faltas e também pelos excessos, pelo cigarro tragado, pelos doces
devorados, pelo olhar que cobiça e pela mão que não compartilha, pelos coitos
interrompidos e pelos desejos reprimidos...uma nação de culpados servís e
decentes! Quem sabe um dia, como já disseram outra vez, da dor nasça uma
flor...ou um buquê delas.
Por um dia ensolarado
Sim,
você sabe. Acordar e nada fazer sentido. O café de sempre, hoje com sabor
corrompido. O cabelo conhecido, transformado em peruca disforme. A calça que
ontem servia, decidida a apertar seu quadril enorme. O dia que nem deveria ter
começado. Eu disse, você o conhece bem. A dor do dedinho lesionado da
topada na quina, o vidro de açúcar arrombado no chão da cozinha, a cama
revirada no fim de um dia cansativo, a louça acumulada dentro da pia. Isso, a
ausência de sentido abrindo alas para a raiva crescente. O folgado que fura a
fila na sua frente, o taxista que corta sua frente, o flerte de outra na sua
frente, o ódio que corrói e a vida que exige que você siga em frente. Basta!
Olha nos meus olhos! Olha se você tem coragem! Brados e afrontas compõem canções
sem melodia, poesias sem rima. É dia de sacudir a poeira do inerte viver. Este
é o convite pouco lisonjeiro de um exigente crescer. É preciso se mexer!
Convoco almas mofadas, restos e sobras, toda ordem de sujeira e inadequação a
tomar um banho de sol. Arejados e ensolarados, assim sejam, os dias que virão.
Conto erótico
Pálpebras apertadas, com força. O cenho contraído sinaliza, para um possível expectador, um misto de dor e êxtase. Assim permanece por tempo excessivamente longo, dada a ocasião. Nem o vento que acaricia sua face e cabelos, nenhum outro som externo, nenhum dos inúmeros aromas que assaltam suas narinas, nem mesmo a rudeza do couro da poltrona que atrita contra sua pele, nada obnubila a onda de prazer que insiste percorrer cada centímetro do seu corpo. Festa de átomos, moléculas, células, tecidos e órgãos. Um corpo todo à mercê. Toda fluida, etérea sensação em crescente tremor. Cada pêlo, a pele inteira, vibrantes intensidades de um tesão escandalosamente inebriante. Os lábios, a língua e a saliva compõem seu silencioso arranjo particular. Evita emitir sons. Nada pode atrapalhar, desviar a atenção, impedir que o endereçamento da voz dele ganhe seus tímpanos. São os dela, os tímpanos dela, origem de tamanha orgia sensorial. A voz dele, fonte de estímulo infindável. Um peito transbordante que convoca cada fibra cardíaca a contrações exageradas. Um acelerado desejo que se aproxima do ápice. Em borbulhante efusão de sons, misturam-se os que agora escapam dela aos dele. A multidão que os cerca de nada desconfia, ela acredita. Mal sabe ela que vivem experiência semelhante. A voz dele cessa. Mais alguns acordes e fim. As palmas decretam a interrupção do gozo. Os olhos dela lentamente se abrem. Ali ele está, no palco à sua frente, segurando o violão com um sorriso satisfeito. Ela imita os demais. Bate palmas em agradecimento à beleza da canção executada. Em agradecimento à sinceridade da experiência proporcionada. Pela primeira vez, em muito tempo, sente-se feliz.
quinta-feira, 9 de maio de 2013
História sem fim
"Vamos inventar um shopping novo, provisório e
parcial". Que lindo convite Carol! Explico para os que chegam agora. Era
uma vez quatro meninas, uma ruiva, uma castanha e duas crespas, branca e
morena. Encontramo-nos. Primeiro em sala de aula. Adolescentes que sonhavam
medicina. Seis anos de cotidiano convívio povoado por risadas, brigas,
lágrimas, intensidades. Por vezes éramos dupla, noutras trio, mas o quatro foi
nosso denominador comum. Destoávamos em quase todo o resto. Algumas metaleiras,
crentes e atéias, paranaense, gaúcha, sul-mato-grossense e catarinense.
Discutíamos política, enquanto deglutíamos ferozmente milk shakes de
ovomaltine. Como disciplinadas "filhas da revolução" elencamos o
shopping como santuário da nossa amizade. Shoppinho, na verdade. A intimidade
permite diminutivos. Nosso trabalho semi-escravo nos plantões da vida amadora,
merecia recompensa. Sedentas de conhecimento e ansiosas em tornarmo-nos aquilo
que queríamos ser, saíamos exaustas. O shoppinho acolhia-nos. Ganhávamos calor
e alimento. Empanturradas, declarávamos convictas: "A gente merece!"
Sim, gurias, a gente mereceu. Cada beijo, sorriso, olhar, abraço, palavra que
nossa amizade pôde proporcionar. Merecemos o amor fraterno desmedido
partilhado. Escolhemos caminhos que nos levaram mundo afora. Volto ao
shoppinho, mas vocês estão longe demais para um reencontro imediato. A vida é
ato, nada de lembranças saudosistas. A marca de vocês em mim, no entanto, não é
passado, é viva, presente e pulsátil. Amo vocês. Por isso, Cá, aceito o
convite. Vamos inventar um novo shopping! Outros novos! Vamos manter vivo o
território existencial da nossa amizade. Que venham outros encontros, novos,
provisórios e parciais! Capítulos-esboço de uma história que se pretende sem
fim.
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