domingo, 3 de novembro de 2013

A estranha

Estranhei meu reflexo no vidro do ônibus. Quase narciso, mas às avessas. Era assim que sentia aquele dia, do avesso. Acordada, parecia sonhando. Insone, nenhum descanso desde a noite anterior, só fragmentos tensos de uma vida sem pausa. E foi na pausa, na viagem, entre o fazer e o não pensar, que me vi. Uma estranha calada encarou-me naquele reflexo. Um esboço rasurado de alguém que já fui, alguém que preferia não ser. Alguém entre, no entremeio de duas vidas, uma aborrecida, outra indesejável.  Um vazio esperava-me na descida, na próxima parada. E assim permaneci: calada, imóvel. Uma estranha à espera.

A fé está nas calças


Acordo, lavo o rosto, cabelos escapam à ditadura do pente, pasta de dente, bolsa, calçada, sento na cadeira do consultório. Um frio percorre minhas entranhas, a barriga dói. Ansiedade? Não, é o botão da calça apertando o excesso do domingo. Arre! Corro até a balança, espera, deixa eu tirar o jaleco, o sapato, faltou alguma coisa? Sim, a insatisfação aumentou um quilo...

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Gente assim


Cada dia mais raro, mas ainda se encontra gente assim. Gente de sorriso largo e olhos sem medo. Gente que traz o coração aberto pro mundo, sem mágoas ou traças. Quando os encontro, assim todo entregues, todo ofertas, me pergunto se na vida não tiveram mesmo espinho que machucasse a alma. Se nunca sofreram por amor, perderam gente querida, se não sentiram dor de dente e se nenhuma vez lhes cutucaram uma ferida. Duvido. Gente assim sofre, chora e geme como qualquer outro, verdade seja dita. O que fazem de diferente? De onde vem tanta alegria? Aprenderam muito cedo, nos primeiros tombos, que assim se vive: a cada queda, um seguir frente. Vivem de apostas, tentando sempre. Por pior a dor, melhor a tentativa de uma vida feliz, assim pensa essa gente.

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Mudas mudanças

Bom mesmo é o calado. Comprime as narinas entre o polegar e o indicador, encolhido. Veste-se de precaução e faz-se todo mesuras, pretensiosamente sábio. Dolorido por não conseguir se esquivar das mais àsperas repreensões. Embrutecido, posa de coerente, vive de aparências. Virtuoso, deita. E sonha escândalo. Algo violento, violador. Desejo ébrio de irromper-se, seja por calores ou tremores, sempre profundos ainda que busquem a superfície. Por êmese, pelos poros, por qualquer fresta. Mudez em mudança.

domingo, 22 de setembro de 2013

Lindo e raro encontro



Se sou sincera? Não existem pessoas sinceras. Sinceridade não constitui estado permanente, é fenômeno. E dos espontâneos. Sinceridade é sempre espontânea. Honestidade é premeditada, sinceridade acontece. Perguntas súbitas evocam respostas sinceras. A surpresa é sincera. O riso incontido também. O choro que transborda é sinceridade úmida que escorre pelo rosto. O suspiro de exaustão, os vômitos em jato e a coceira, o olhar deslumbrado dos apaixonados. Sinceridades somáticas. Acontecimentos sinceros revelam. São véus caídos que desnudam verdades. E mais, que possibilitam identidades e identificações. Ou você nunca se identificou com um comportamento inapropriadamente sincero? Uma risada no velório ou uma crise de tosse no silêncio de uma platéia atenta? O inoportuno é sincero. O incoveniente também. O arroto que escapa e o bocejo que viola o mutismo dos lábios comprometidos com a escuta do outro. Acredito mesmo que a sinceridade é sempre um grito de liberdade. Por vezes em baixos decibéis, mas não menos grito. No que o grito tem menos de forma do que de conteúdo. A sinceridade é a erupção da singularidade. Ok, posso ser a maior parte do tempo esse ser social e sociável, mas a sinceridade resgata-me do outro. Permite-me ser o que sou, ainda que por fugazes instantes. Instantes que podem possibilitar um lindo e raro encontro: o que há de sincero em mim conhecer o que de sincero há no outro.

terça-feira, 11 de junho de 2013

Solitária viagem


Lá vai ele. Barco de leme leve, balançando sobre as ondas, incessante sobe e desce. A cada marola, vento sem importância ou brisa boba, sua proa é levada, rumo incerto. Navega inseguro, tremulante, para onde ninguém sonha. Sofre a solidão dos que duvidam e nunca acertam. À espera de uma certeza, mesmo que breve, ainda que rara. Deseja um marujo, um mestre, uma bússola já bastava. Perdido, aposta. Aposta no rumo das coisas que parecem, mas nunca chegam a ser. Aposta na liberdade dos destinos sem nome. Num universo diverso, onde se convida a serenos gestos, sorrisos suaves e lentas melodias. Da estranha estabilidade, o barco se esquiva, vê ali sombras intranquilas. Foge o que pode, sem fôlego, sem asas, só remos curtos. E deseja! Deseja mares, oceanos, infinitudes insuperáveis para que possa dar a si o consolo da doce derrota das grandes tentativas.

terça-feira, 14 de maio de 2013

Fortaleza



Relaxa, não estamos em guerra. Isso, solta os ombros, respira um pouco mais profundo. Veja. O feio, o mau e o errado não irão destruir você. Ah, de injustiças é feita a civilidade, de malvadeza está cheia a cidade, tem razão. O coração dos homens há muito ganhou membrana pétrea, um pericárdio áspero. Corpos cheios de membranas endurecidas. Contratilidades restritas, respirações rasas, olhos míopes e ouvidos hipoacúsicos. Como dizia o Rei, todos estão surdos. Concordo, estamos perdendo a afetação do sensível. O mundo é hostil, a vida injusta e você morrerá sozinho. Tá bem, é isso mesmo. Ainda assim, para quê servem essas defesas? Aonde você vai com essa carranca tesa que não tira, nem no banho ou na cama? Para quê esses punhos fechados, esses dentes cerrados e os sapatos apertados? De onde vem o insulto que justifica o seu armamento pesado? A defesa não é o melhor ataque. Fecha os olhos.  Lembra a tranquilidade dos dias iluminados, do afago morno deslizando nos cabelos, da bebida quente acariciando as mucosas e confortando o estômago, do algodão macio e perfumado abraçando a pele. Interrompe a corrida e percebe os pés tocando o chão suavemente. Sinta o alívio dos músculos, a tez leve e o espreguiçar dos dedos. Pega um espelho e encara a imagem refletida...O desejo narcisista caducou. A vida é mais. Medos desnudados convidam encontros e entregas. A sensibilidade pode ser uma poderosa arma de guerra.

domingo, 12 de maio de 2013

Sobre a culpa



Culpa. Palavra bonita. Começa mal, é verdade. Tem um levantar de língua em seguida e termina estrondosa, abrupta - pá! Se não fosse tão popular, passaria fácil por nome de flor. "Me vê um buquê de culpas, por favor". Tem gente que diz que graças à culpa a sociedade sobrevive, mal, mas sobrevive. Imaginem uma sociedade sem culpa?! Todos mortos, assassinados, estuprados, violentados...a culpa é o interdito da barbárie. E um ser vivente sem culpa? Psicopata, anti-social, é claro, um pária, escória...pior, ameaça! Como coibir o ímpeto destrutivo de alguém sem culpa? Melhor não imaginar... Por isso, irmãos, sigamos culpados! Culpados pela dor que causamos, pelo amor que não damos, por todas as faltas e também pelos excessos, pelo cigarro tragado, pelos doces devorados, pelo olhar que cobiça e pela mão que não compartilha, pelos coitos interrompidos e pelos desejos reprimidos...uma nação de culpados servís e decentes! Quem sabe um dia, como já disseram outra vez, da dor nasça uma flor...ou um buquê delas.

Por um dia ensolarado



Sim, você sabe. Acordar e nada fazer sentido. O café de sempre, hoje com sabor corrompido. O cabelo conhecido, transformado em peruca disforme. A calça que ontem servia, decidida a apertar seu quadril enorme. O dia que nem deveria ter começado. Eu disse, você o conhece bem. A dor do dedinho lesionado da topada na quina, o vidro de açúcar arrombado no chão da cozinha, a cama revirada no fim de um dia cansativo, a louça acumulada dentro da pia. Isso, a ausência de sentido abrindo alas para a raiva crescente. O folgado que fura a fila na sua frente, o taxista que corta sua frente, o flerte de outra na sua frente, o ódio que corrói e a vida que exige que você siga em frente. Basta! Olha nos meus olhos! Olha se você tem coragem! Brados e afrontas compõem canções sem melodia, poesias sem rima. É dia de sacudir a poeira do inerte viver. Este é o convite pouco lisonjeiro de um exigente crescer. É preciso se mexer! Convoco almas mofadas, restos e sobras, toda ordem de sujeira e inadequação a tomar um banho de sol. Arejados e ensolarados, assim sejam, os dias que virão.