segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Covardia

Desorientada, habitando corpo sacudido por turbulências, intensidades, veleidades. Assim tenho vivido. Há dias uma migrânea fez da minha têmpora esquerda morada. Lembrete insistente de minha distração inoportuna. A cada badalada pulsátil, nauseante, faz-me recordar da urgência da decisão que me espera. Tento ignora-las, a dor e a decisão pendente, mas essa outra que aqui reside, não desiste. Cansada, me entrego aos abalos eméticos, contraio não apenas o ventre, a língua e a boca se entregam ao movimento sísmico. Faço-me vulcão, transmuto-me em descarga desejosa de alivio. Este chega, por fim. E dura, para meu desespero, poucos minutos. Faz-se silêncio, tristeza, vazio. Anoitece em mim uma melancolia, úmida, cinzenta, fétida. Ferida com casca amolecida, dela faço distração. Choro um fado dissonante, bocejo e, então, entrego-me ao sono. Um dia a menos, coragem postergada. 

Mais uma dose

Acho que não sirvo para isso
Ao controle, às contas, ao previsível sirvo
E também ao erudito, ao escrito, ao predito 
Sirvo, ainda, ao domínio, à raiva herdada, a qualquer outro modelo de viver
Mas, para isso, não sirvo
Sou garçonete em banquetes alheios
Festas de homenagem e honra ao mérito
Qualquer comemoração que não seja minha
Para mim, não, eu não sirvo.

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Para dois

Balanço leve e ritmado, 
São dois pra lá, dois pra cá 
Dançantes, deslizantes 
Delicioso movimento compassado
Um tropeço mudo e o vai e vem se perde
É um pra cá, um pra lá
Música que finda, ouve-se o barulho de fora 
As luzes se acendem, já não se reconhecem 
À distância, vêem, um ao outro. 

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Da breve história de um homem sem cabeça e que tinha libido nos pés

Ele corria pelo mundo. De todas as intensidades existentes, de tudo que poderia percorrer com os ouvidos, olhos, boca, narinas...nada. Não havia uma cabeça e seus apêndices para sentir. Um homem sem cabeça, privado de tais faculdades, poderia sentir com os membros, o torso, as panturrilhas. Escolheu os pés. Neles morava quase toda sua energia. Pés que o levariam para onde seu corpo desejava estar. Pés que batiam com força no chão, impulsionando-o todo para frente, para longe. Para longe daqui, dali, talvez dele mesmo. Não importava. Pensamentos e reflexões esvaziados por uma corrida desejante, pulsátil e viva. Cada célula, fibra muscular, inervação, todo o sangue que podia ir conduzia aqueles pés libidinosos. Fugidios. Fuga? O custo do movimento era a dúvida. E da dúvida a cabeça não se ocupava, já que não existia. O corpo se ocupava. Desse corpo ocupado por sensações, tremores, batimentos cardíacos erráticos, intensos, insones. A corrida precisava ganhar mais velocidade. Uma dor surge no calcanhar: Aquiles e a flechada envenenada que o condena à morte. A dúvida materializada no calcanhar, sem mordaça, grita: não correrás! Uma cabeça disforme tenta surgir. Delineia-se como uma sombra pesada que atrapalha os dias do homem. Estagnado, chove. Do meio da chuva, pela porta da frente da casa surge uma mulher. Ele não sabe se é bonita, não sabe se é feia, não sabe se a deseja. Subitamente a boca é capturada pela estranha invasora e ganha intensidade. Uma rajada de afeto e sangue toma a face, agora são bochechas, olhos, boca e nariz corados, traços bem delineados. O coração volta a acelerar, a pele febril faz dos pelos manto eriçado, o pênis rijo rouba o sangue dos pés, agora gelados. O corpo paralisa. A cabeça agora está lá e, com ela, seus pensamentos. A cada tentativa de correr para onde seu corpo exige, os devaneios interditam. A cabeça renascida deseja a mulher, o corpo a corrida. Sentindo-se traído, os pés gelados não saem do lugar. O corpo passa a se negar à entrega. Do pênis flácido surge a salvação do calcanhar. Os pés retomam o sangue perdido, a libido coloca-os novamente em movimento. A dor da dúvida havia desaparecido. Correm. Correm. Correm. A estranha mulher que se apaixonara pela cabeça reinventada e agora em desaparecimento pede atenção, quer que os ouvidos a escutem, que os olhos a olhem, que a boca a beije. Essa história, no entanto, não é sobre ela.  O homem sem cabeça e que tinha libido nos pés tinha uma corrida a correr. Era essa a sua natureza. Para não deixar dúvidas e, num último esforço, com o pouco de sangue que restava para as mãos ele escreve à mulher: logo.

Fim do primeiro ato

Gente só

No fim fica tudo menos a gente
Não, fica nada e só a gente
Mas que gente?
A gente só.

Olhos quedados

Desses olhos que já viram muito, tanto
Desses olhos que já viram longe, e que de perto já se enamoraram
Desses olhos que já perscrutaram pequenezas, detalhes
Desses olhos que testemunharam chegadas, partidas, acontecimentos
Desses olhos que já se encharcaram em afetos e desafetos
Desse olhos, intensos, transbordantes
Que outrora investigativos, curiosos, ansiosos
Hoje contemplativos, reflexivos, mansos
Em cada um desses olhos vejo mundos, historias, olhares singulares sobre o existir
Com meus olhos, atrás dessas lentes, procuro esses olhos
Procuro as intensidades das cataratas desse olhar.


Desencontros virtuais

Lidas, ditas, escritas 
São dessas palavras mudas, mundanas de que falo
Conversas escassas de sentido, barulho que abafa a tentativa de revelar
São ois, olás, tudo bens, como vais que fazem fundo sonoro para um tempo suspenso
Lugar flutuante, mole, móvel, sem cheiro, gosto insosso, rumo incerto
A náusea que brota desse engodo não floresce como na escrita do poeta
Gera apenas cadáveres autômatos impulsionados pelo falar sem dizer

Traidora

Sou uma mulher traída
Traída pela própria boca
Voz projetada para o ataque
Chicote, navalha, lâmina de aço
Que corta o ar
O ódio, a ira, o desejo de corromper
Conjugados em palavras dilacerantes.
A mulher que aposta no silêncio
Coloca fichas no afeto
Busca a compreensão
A relação com o outro
É vulgarmente traída
Por si, só.