Ele corria pelo mundo. De todas as intensidades existentes, de tudo que poderia percorrer com os ouvidos, olhos, boca, narinas...nada. Não havia uma cabeça e seus apêndices para sentir. Um homem sem cabeça, privado de tais faculdades, poderia sentir com os membros, o torso, as panturrilhas. Escolheu os pés. Neles morava quase toda sua energia. Pés que o levariam para onde seu corpo desejava estar. Pés que batiam com força no chão, impulsionando-o todo para frente, para longe. Para longe daqui, dali, talvez dele mesmo. Não importava. Pensamentos e reflexões esvaziados por uma corrida desejante, pulsátil e viva. Cada célula, fibra muscular, inervação, todo o sangue que podia ir conduzia aqueles pés libidinosos. Fugidios. Fuga? O custo do movimento era a dúvida. E da dúvida a cabeça não se ocupava, já que não existia. O corpo se ocupava. Desse corpo ocupado por sensações, tremores, batimentos cardíacos erráticos, intensos, insones. A corrida precisava ganhar mais velocidade. Uma dor surge no calcanhar: Aquiles e a flechada envenenada que o condena à morte. A dúvida materializada no calcanhar, sem mordaça, grita: não correrás! Uma cabeça disforme tenta surgir. Delineia-se como uma sombra pesada que atrapalha os dias do homem. Estagnado, chove. Do meio da chuva, pela porta da frente da casa surge uma mulher. Ele não sabe se é bonita, não sabe se é feia, não sabe se a deseja. Subitamente a boca é capturada pela estranha invasora e ganha intensidade. Uma rajada de afeto e sangue toma a face, agora são bochechas, olhos, boca e nariz corados, traços bem delineados. O coração volta a acelerar, a pele febril faz dos pelos manto eriçado, o pênis rijo rouba o sangue dos pés, agora gelados. O corpo paralisa. A cabeça agora está lá e, com ela, seus pensamentos. A cada tentativa de correr para onde seu corpo exige, os devaneios interditam. A cabeça renascida deseja a mulher, o corpo a corrida. Sentindo-se traído, os pés gelados não saem do lugar. O corpo passa a se negar à entrega. Do pênis flácido surge a salvação do calcanhar. Os pés retomam o sangue perdido, a libido coloca-os novamente em movimento. A dor da dúvida havia desaparecido. Correm. Correm. Correm. A estranha mulher que se apaixonara pela cabeça reinventada e agora em desaparecimento pede atenção, quer que os ouvidos a escutem, que os olhos a olhem, que a boca a beije. Essa história, no entanto, não é sobre ela. O homem sem cabeça e que tinha libido nos pés tinha uma corrida a correr. Era essa a sua natureza. Para não deixar dúvidas e, num último esforço, com o pouco de sangue que restava para as mãos ele escreve à mulher: logo.
Fim do primeiro ato
Oi Paula, adorei seu texto.
ResponderExcluirTe confesso que me vi nesse teu texto.