terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Do amor vazio ao vazio amoroso

Diante do vazio não sabemos mesmo do que se trata essa intensidade que não nos deixa comer, não nos deixa dormir, não nos deixar ser. Viver é um esforço de se manter de pé e funcionante entre calafrios em dias quentes, náuseas e dores de cabeça. A vida dá essa sensação de se sentir doente, quando a gente está diante do vazio. Percebo com muita clareza, essa clareza branca, tão luminosa que cega (e agora finalmente acho que compreendo Saramago no seu Ensaio) que muito do que a gente diz não faz nenhum sentido. Chamamos de amor a servidão, chamamos de liberdade a repetição, chamamos de alegria a compulsão. Só, claudicante, encontra-se um transeunte. Olhos nos olhos, coração palpitante e o corpo tremulante parecem indicar que se está diante da possibilidade de obliterar o buraco do existir. E aí são juras, criam-se mundos, futuros, todos os sentidos ganham ênfase. Viramos super homens, mulheres maravilhas, dotados de poderes transumanos, visões a longa distância, olfatos apurados e direcionados ao objeto de desejo, todo ouvidos, toques hiperbáricos. Da beleza do encontro vem a ruína dos dias. Diante da grandeza, da infinitude da possibilidade de dançar em par todas, as mais diversas melodias já inventadas, as que estão ainda para se inventar, diante da sublime, extasiante, criativa, profícua (tantos e mais outros atributos, infinitos atributos) da alegria de encontrar um outro e dele e com ele fazer par, nos limitamos. E limitamos o outro. E aí são regras, contratos, cláusulas, hipotecas, contas bancárias, contas telefônicas, números, muitos números e distâncias. O vazio, esse vazio que aqui estava há poucos segundos quando me vi diante dessa tela em branco, o vazio que continua aqui, mas que distraído pelo movimento dos meus dedos e por essas palavras que aqui vão ganhando sentido, sentido que vou construindo na medida em que elas saem de mim e falam comigo, esse vazio que conheço tão bem, esse vazio desconhecido, que está em mim e que também está em você, é faminto. Colocamos esse outro, esse que parece ter nos causado boa impressão (alegria? distração? identificação?) como rolha na boca desse buraco com fome. Devoramos o outro, cada pedacinho, nos deliciamos nesse processo, o buraco parece saciado, preenchido, deliciosa refeição apaziguadora. Aniquilamos o outro. Limitados na tentativa da posse e do controle e assassinos de qualquer expressão da alteridade, colocamos alianças e nos chamamos de casal. Assim, siameses, simbióticos, monstruosos nos dizemos família, inventamos bebês e berços, chocalhos, carrinhos, bonecas. Agregamos mais corpos ao corpo institucional familiar. Criamos um bloco. Um bloco que paga impostos, reza antes de dormir ou vai ao shopping. Tanto faz. Cada ser, cada possibilidade de invenção, cada fagulha criadora é despontencializada em repetição, servidão, compulsão. Corpos autômatos, tristes, zumbis vagueiam pelas ruas, repousam nas camas queen size, mostram o Lucas Neto para as crianças antes de dormir para, no outro dia, repetir. Nessa morte, não há vazio. Ocupado, de boca cheia, cheio de dinheiro (ah, quando há), cheio de afazeres, tarefas, horários, compromissos, listas de mercado, listas de material escolar, listas, todas as listas, ele ronca com os dentes sujos da comida do dia anterior que não foram escovados. De manhã, ocupado e calado engole o café, depois o feijão e no fim do dia uma bebida ou um sedativo para garanti-lo silenciado. 
Não há amor nessa captura triste. Não há nenhum amor, nenhuma possibilidade de amar no silenciamento do desejo. Uma vida de traições, traindo todo tempo a si, para servir não ao outro, mas a essa intensidade mortífera que nos aprisiona dentro dos apartamentos, dos escritórios, dos consultórios, dos quartos com janelas antirruído e sem mosquitos, essa vida morta é vazia de amor. Basta, chega. Que as noites vivas sejam insones, que a carne doa, que as batidas do coração revelem a angústia, que haja incômodo, desconforto, desassossego. Que a vida machuque. Não há outra maneira. Que seja o soco na boca do estômago que a Clarice insistia em denunciar e reproduzir. Para que nada, nunca, jamais, seja perfeito. Que falte sempre, para que a alegria e a paz sejam verdadeiras. Para que seja possível amar.


segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Covardia

Desorientada, habitando corpo sacudido por turbulências, intensidades, veleidades. Assim tenho vivido. Há dias uma migrânea fez da minha têmpora esquerda morada. Lembrete insistente de minha distração inoportuna. A cada badalada pulsátil, nauseante, faz-me recordar da urgência da decisão que me espera. Tento ignora-las, a dor e a decisão pendente, mas essa outra que aqui reside, não desiste. Cansada, me entrego aos abalos eméticos, contraio não apenas o ventre, a língua e a boca se entregam ao movimento sísmico. Faço-me vulcão, transmuto-me em descarga desejosa de alivio. Este chega, por fim. E dura, para meu desespero, poucos minutos. Faz-se silêncio, tristeza, vazio. Anoitece em mim uma melancolia, úmida, cinzenta, fétida. Ferida com casca amolecida, dela faço distração. Choro um fado dissonante, bocejo e, então, entrego-me ao sono. Um dia a menos, coragem postergada. 

Mais uma dose

Acho que não sirvo para isso
Ao controle, às contas, ao previsível sirvo
E também ao erudito, ao escrito, ao predito 
Sirvo, ainda, ao domínio, à raiva herdada, a qualquer outro modelo de viver
Mas, para isso, não sirvo
Sou garçonete em banquetes alheios
Festas de homenagem e honra ao mérito
Qualquer comemoração que não seja minha
Para mim, não, eu não sirvo.

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Para dois

Balanço leve e ritmado, 
São dois pra lá, dois pra cá 
Dançantes, deslizantes 
Delicioso movimento compassado
Um tropeço mudo e o vai e vem se perde
É um pra cá, um pra lá
Música que finda, ouve-se o barulho de fora 
As luzes se acendem, já não se reconhecem 
À distância, vêem, um ao outro. 

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Da breve história de um homem sem cabeça e que tinha libido nos pés

Ele corria pelo mundo. De todas as intensidades existentes, de tudo que poderia percorrer com os ouvidos, olhos, boca, narinas...nada. Não havia uma cabeça e seus apêndices para sentir. Um homem sem cabeça, privado de tais faculdades, poderia sentir com os membros, o torso, as panturrilhas. Escolheu os pés. Neles morava quase toda sua energia. Pés que o levariam para onde seu corpo desejava estar. Pés que batiam com força no chão, impulsionando-o todo para frente, para longe. Para longe daqui, dali, talvez dele mesmo. Não importava. Pensamentos e reflexões esvaziados por uma corrida desejante, pulsátil e viva. Cada célula, fibra muscular, inervação, todo o sangue que podia ir conduzia aqueles pés libidinosos. Fugidios. Fuga? O custo do movimento era a dúvida. E da dúvida a cabeça não se ocupava, já que não existia. O corpo se ocupava. Desse corpo ocupado por sensações, tremores, batimentos cardíacos erráticos, intensos, insones. A corrida precisava ganhar mais velocidade. Uma dor surge no calcanhar: Aquiles e a flechada envenenada que o condena à morte. A dúvida materializada no calcanhar, sem mordaça, grita: não correrás! Uma cabeça disforme tenta surgir. Delineia-se como uma sombra pesada que atrapalha os dias do homem. Estagnado, chove. Do meio da chuva, pela porta da frente da casa surge uma mulher. Ele não sabe se é bonita, não sabe se é feia, não sabe se a deseja. Subitamente a boca é capturada pela estranha invasora e ganha intensidade. Uma rajada de afeto e sangue toma a face, agora são bochechas, olhos, boca e nariz corados, traços bem delineados. O coração volta a acelerar, a pele febril faz dos pelos manto eriçado, o pênis rijo rouba o sangue dos pés, agora gelados. O corpo paralisa. A cabeça agora está lá e, com ela, seus pensamentos. A cada tentativa de correr para onde seu corpo exige, os devaneios interditam. A cabeça renascida deseja a mulher, o corpo a corrida. Sentindo-se traído, os pés gelados não saem do lugar. O corpo passa a se negar à entrega. Do pênis flácido surge a salvação do calcanhar. Os pés retomam o sangue perdido, a libido coloca-os novamente em movimento. A dor da dúvida havia desaparecido. Correm. Correm. Correm. A estranha mulher que se apaixonara pela cabeça reinventada e agora em desaparecimento pede atenção, quer que os ouvidos a escutem, que os olhos a olhem, que a boca a beije. Essa história, no entanto, não é sobre ela.  O homem sem cabeça e que tinha libido nos pés tinha uma corrida a correr. Era essa a sua natureza. Para não deixar dúvidas e, num último esforço, com o pouco de sangue que restava para as mãos ele escreve à mulher: logo.

Fim do primeiro ato

Gente só

No fim fica tudo menos a gente
Não, fica nada e só a gente
Mas que gente?
A gente só.

Olhos quedados

Desses olhos que já viram muito, tanto
Desses olhos que já viram longe, e que de perto já se enamoraram
Desses olhos que já perscrutaram pequenezas, detalhes
Desses olhos que testemunharam chegadas, partidas, acontecimentos
Desses olhos que já se encharcaram em afetos e desafetos
Desse olhos, intensos, transbordantes
Que outrora investigativos, curiosos, ansiosos
Hoje contemplativos, reflexivos, mansos
Em cada um desses olhos vejo mundos, historias, olhares singulares sobre o existir
Com meus olhos, atrás dessas lentes, procuro esses olhos
Procuro as intensidades das cataratas desse olhar.


Desencontros virtuais

Lidas, ditas, escritas 
São dessas palavras mudas, mundanas de que falo
Conversas escassas de sentido, barulho que abafa a tentativa de revelar
São ois, olás, tudo bens, como vais que fazem fundo sonoro para um tempo suspenso
Lugar flutuante, mole, móvel, sem cheiro, gosto insosso, rumo incerto
A náusea que brota desse engodo não floresce como na escrita do poeta
Gera apenas cadáveres autômatos impulsionados pelo falar sem dizer

Traidora

Sou uma mulher traída
Traída pela própria boca
Voz projetada para o ataque
Chicote, navalha, lâmina de aço
Que corta o ar
O ódio, a ira, o desejo de corromper
Conjugados em palavras dilacerantes.
A mulher que aposta no silêncio
Coloca fichas no afeto
Busca a compreensão
A relação com o outro
É vulgarmente traída
Por si, só.