terça-feira, 5 de maio de 2020

Chega (junto)


É o momento. Vamos ter logo essa conversa, estou irritada, impaciente e você só ri, sorri esse sorriso bobo, infantil, cansei. Vamos conversar feito adultos, olhos nos olhos, frente a frente. Que isso que pensas que vai fazer de mim? Eu aqui toda à mercê de ti e o que tu me ofertas não é seguro, não é estável, não tem alianças ou garantias. Que isso que achas que vai fazer de mim? Sou uma mulher grande, pago minhas em contas em dia, compro minhas roupas, minhas comidas, sou dona de mim. Agora quer que eu abra mão das minhas certezas por essas promessas? De satisfação? Satisfação? São segundos, efêmeros, mal pisco os olhos e a sensação já acabou. O que é isso então? O que é isso? Sim, estou com muita raiva de ti. Eu era bem sucedida, tinha muitos likes, gostava dos meus selfies, a cada mordida dada, a cada deglutida bem sucedida, sentia-me plena. E se, não assim, pelo menos tinha os outros, seus favores, seus cuidados, seus amores. Devoções evocadas por minha infinda carência de atenção. Ai tu resolveste te revelar para mim. Disse-me que era a única saída para uma vida com sentido, me prometeu que a escrita, as cores, as invenções, os encontros que não demandem mais do outro do que o outro pode dar, que é na relação com esse outro que tem ideias, planos, interesses diferentes do meu é que eu e tu poderíamos existir, que seriamos uma bela dupla, desde que eu te escutasse e te respeitasse, em primeiro lugar. Me prometeste uma historia escrita por minhas próprias mãos, em primeira pessoa, com toda a dor e a entrega que isso implicaria, mas prometeste para mim que faria sentido! Cadê o sentido? Sinto dor, me sinto sozinha, estou cansada! Já te disse que não vou mais fugir dessa conversa, olha aqui. Ah, até isso tu te recusas, de me olhar. Só queres que eu te escute e que eu siga apostando. Até quando? Sinto que não consigo. Penso em desistir. O calor do sossego de receber leite de qualquer teta por ai, das tetas que eu comprar, das que eu acredite existir me acomodam, me tranquilizam e narcotizam. Quero paz! Por que tu foste inventar de se mostrar para mim? Por que esse amor que sinto por ti faz tanto sentido e ao mesmo tempo me causa tamanha dor? Sim, eu sei. Tudo depende da minha escolha. É só isso que insistes em me dizer. E pior, quando não te dou ouvidos, quando tapo orelhas, tiro meus óculos, não quero, não quero, não quero, ainda assim existes. É uma vida interessante que me ofertas né? Desafiadora? Em que a preguiça é escanteada, em que o conforto ganha outro sentido, em que o amor só existe se tu fores respeitado para assim também o outro ser respeitado. Tá, entendi. Essa conversa me irrita, porque sei que tu tens razão. Na verdade, tu passa longe dela e eu também, acho que por isso minha loucura combina tão bem com a tua. Fomos feitos um para o outro, é disso que se trata. Faz sentido. Estou um pouco mais calma, mas sei que logo estarei desacomodada e com dor. Inferno! Ainda bem que tu estás ai persistente e insistente. Grata pelos pés na bunda diários. Amanhã voltaremos a discutir, desejo. Espero que inventemos outras a partir disso.

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