quinta-feira, 12 de março de 2020

A menina que não escutava sua voz

Era uma vez uma menina que vinha de longe, muito longe, de um passado distante e adormecido que só reaparecia nos assombros das palavras mal ditas. Antiquada nos gestos e insegura no falar, tentava sobreviver a despeito de todos os sons e ruídos do mundo ao redor. Essa menina não escutava. Sua surdez, no entanto, não era ordinária. Flertava com a loucura de tudo escutar, até o que não era dito, menos sua própria voz. Em seus raros momentos de aparição, quase como um fantasma, não assustava, ao contrário, se assustava com quase tudo que havia. O modo com as pessoas se vestiam, do que riam, o que comiam, como se comunicavam. Das vozes dos outros era povoada, algumas mais agudas, outras sussurradas, todas habitavam sua cabecinha mal acabada. Por vezes, em seu retiro, pegava-se rindo sozinha, achava tudo tão pós-moderno, adulto, mas ao mesmo tempo jovem, coisa que nunca foi e nem seria, já que era uma criança antiga. Nem sempre notavam sua presença, ora, a quem queria enganar, nunca notavam-na, e era comum lhe pisarem os pezinhos delicados com tropeções, seu corpinho se contorcia em dor com a voz impaciente de alguns adultos, mas as crianças também sabiam machucá-la. Como na história do Peter que nunca crescia, a menina também nunca envelhecia. O passar dos anos não lhe traziam rugas, cabelos brancos, nem as formas de uma mulher. Era sempre pequenina e pueril, nossa heroína surda. No começo falava, aos borbotões. De tanto não ser ouvida, da indiferença alheia e também da sua própria com seus ouvidos ineptos, foi se calando. Entediada, decidiu recolher-se também dos atos. De que adiantava agir se não se ouvia? Assim, repetia. Sentada comodamente à janela do movimento dos dias, decidiu que iria apenas contemplar, olhar a paisagem intensa da vida. Depois do tédio, veio o sofrimento. Sentia uma energia crescente dentro de si, mas desabilitada do ouvir, falar e fazer, não sabia como mediar tamanha dor. E então, um belo dia, decidiu que iria fazer sem saber. O assento que passara a ser incômodo lhe obrigava a ir, a viver. Nos primeiros dias, achou que pedir, exigir, demandar era mesmo a melhor saída. Resolveu gritar e, para sua surpresa, a voz era audível e muitas pararam para escutá-la. Sentiu-se poderosa, mesmo surda, recuperou sua fala e agora dizia tudo o que dos outros queria: "muitas balas e chocolates. Não! esse não! quero também ser levada na praia, não, nessa não! quero só dormir e você me cuidar, não, assim, não!" Viu-se diante da raiva, da frustração de não lhe servirem como queria e voltou à insatisfação. Com a barriguinha estufada de certezas, olhou ao redor e estava só. Triste e só. Aqueles que responderam à sua fala, cansaram de suas demandas e a deixaram-na lá, com suas coisas e  tédio. Não lembra nem como, nem porque, mas foi nesses dias sem sentido que lembrou do barulho do mar e do encanto mágico que sentia no seu corpo o vai e vem das ondas a lhe embalar. Pegou suas pequenas roupinhas que também eram azuis e foi com ele encontrar. Mergulhou, mergulhou, mergulhou. Viu peixinhos, seus olhinhos pequenos arderam com o sal e, por fim, com os olhinhos fechados, que agora faziam companhia para sua boca calada e seus ouvidos tapados, sentiu. A sensação era nova, um corpo meio solto, parecia que ia cair e se afogar. Assustada pensou em sair dali e um abrigo seco procurar. No meio da inquietação uma onda a derrubou e no caos ela se lançou. Um pensamento aflitivo lhe sobressaltou, 'não quero morrer!' e aí desandou a gargalhar. Pela primeira vez escutou sua própria voz e era o som da sua risada. Sim, ela estava lá. A menina olhou para o seu corpo que subitamente ganhava formas e sentia-se como uma borboleta vivendo ali seu transformar. As gargalhadas foram diminuindo de intensidade e o corpo agora era o de uma mulher. Saiu do mar e sentiu o seu quadril rebolar. Sorriu serenamente e sentiu a leveza de ter uma voz e de ter ouvidos para escutar. Poderíamos, nessa altura da história, dizer que a menina, agora mulher viveu feliz para sempre. Não foi isso que aconteceu, felizmente. Para sempre é muito tempo e felicidade é construção cotidiana que rima esforço e distração, assim, numa mesma conexão. Alegre sim, a menina se sentia sempre que se ouvia e, quando não podia, ia ver o mar.

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