Um estranhamento era o que sentia. Com vontade, tentava manipular o contorno daquilo que queria não fosse amorfo, mas era exatamente o que era. Uma carne mole que escorregava entre os dedos, a negação da materialidade, da concretude que os olhos capturavam e insistiam dizer que era verdade. Não o era. A cada aperto, mordida, algo escapava. Ela gemeu alto e silenciou. Parecia ter gozado. Ele respirou aliviado. Levantou-se, deu-lhe um beijo na testa e disse sem certeza: “gosto disso”.
No banheiro, lavou as mãos, o rosto, algumas gotas macularam a camiseta. Olhou-se no espelho e viu a cabeça. Sentiu novamente o estranhamento. Aceitou a refeição que ela tinha preparado, por que ela falava tanto? Parecia satisfeita com sua própria voz. Sorriu gentilmente, olhou as unhas da mão. Precisava cortá-las. Ouviu-a dizer: “Preciso ir. Quer carona?” Não, ele não queria. Beijaram-se. No toque dos lábios buscou sentido, não sabia se havia. Ela disse bruscamente: “Talvez não te encontre mais, mas também não sei se isso te afeta”. Os olhos dela eram impacientes. Ele sentiu algo no peito, parecia raiva, resignou-se a dizer: “calma, nos veremos.” Fechou a porta pesada atrás de si e olhou o asfalto. A rua ia numa subida, a descida não era visível. Desejou ser a rua.
Dentro do carro, teve a certeza da necessidade de vendê-lo: “o que eu quero com isso?” Sentiu os pés formigarem dentro dos tênis. Estacionou o carro na frente da casa, acionou o alarme. A sua cadela não estava lá e sentiu saudade dela. Pensou na ex, pensou em não pensar na ex, pensou porque estava pensando na ex. “Pra que serve essa cabeça?” e coçou os cabelos ralos. Decidiu que já tinha passado da hora de raspá-los.
A casa estava vazia, ainda que cheia de móveis. Todos velhos, antiquados, lhe provocavam certo nojo. Sabia que o fim estava próximo. Amanhã ainda, iria entregar as chaves para o dono da casa e partiria para a casa do pai. Compreensão não havia lá, mas havia conforto e, por ora, era o que bastava.
Já passava da hora do almoço, quando chegou. O pai fumava um cigarro sentado numa cadeira de praia enferrujada. Quando o viu, escancarou os dentes. De longe via-se sua satisfação com a chegada do filho mais novo. Finalmente, ele estava de volta. O pai olhou-lhe nos olhos e perguntou: “quer um?” apontando para o cigarro. Ele fez que não com a cabeça.
Conversaram por mais de uma hora. O pai falou a maior parte do tempo, fez referências ao passado, conjecturas sobre o futuro, sobre o que seria do futuro, deles. Ele escutou, sabia escutar com paciência. A cabeça lhe pesava, mas os ouvidos, quando presentes, sempre funcionaram bem. Tentou articular algo de singular, expor um pouco da sua opinião, mas a capacidade de escuta não era uma herança paterna. Pensou na mãe sozinha e com dor. Disse ao pai: “Vou lá na mãe, logo mais tô de volta”. O pai assentiu com ar sério e deu uma baforada olhando para a rua.
A mãe, sentadinha no sofá, olhava um filme na tevê. Seu sorriso manso e amoroso sempre lhe aquecia o coração, mas a culpa não o deixava sentir o calor por mais do que alguns segundos. Com os olhinhos marejados, a mãe disse: “Que bom que tu veio, meu filho.” Ele sentou agarradinho com ela e sentiu o corpo protegido. A cabeça esvaneceu-se.
Fim do segundo ato
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