sábado, 21 de março de 2020
À luz do gozo
Madrugada. Já foi sábado, agora domingo, essa transição que costumo passar de olhos fechados quando só e que só uma boa companhia costuma me ludibriar. Falaciosamente solitária, em realidade, já que meu turbilhão de pensamentos e seus ruídos, palavras, frases não me presenteiam com o abandono desejado. Acordada, depois de um sono restaurador nas horas iniciais da noite, graças a três taças de vinho tinto sorvidas apenas com o intuito de dispersar o fluxo reflexivo da minha mente inquieta. Deu certo. Dormí e, agora, apaziguada, me sinto excessivamente desperta. Resolvo estudar, parece-me a coisa certa a fazer considerando meu sentimento de inutilidade nesses últimos dias. O trabalho mental me absolve da culpa diante da minha imobilidade corporal. Lendo, lembro que não declarei o imposto de renda. Tenho que buscar o telefone da contadora. Agora não. Depois. Me lembro da merda da conta de luz que não paguei. Penso que se o mundo acabar, por conta do tal do vírus que me proíbe de sair de casa e me deixa assim inquieta e sedenta de conhecimento e aflita com a conta que não paguei, se o mundo acabar, a conta de luz pode esperar. Ou melhor, não será questão. O mundo não vai acabar. Me vejo diante do sentido de viver o presente, da realidade que me atualiza da temporalidade e da terminalidade do meu corpo e mente, intuo meus batimentos cardíacos que claro não os percebo, mas que sei se repetem e me mantem aqui, viva. Preciso achar a conta de luz. Inicio a busca. Meu humor até então ameno, quase entediado diante da leitura formativa a que me dedicava e meu olhar que fazia seu papel servil de garantir a captura correta das informações, ambos ganham gravidade. A carranca faz-me lembrar, em matizes gris de uma cena distante: sentada no consultório, com meu jaleco manchado de tinta de caneta esferográfica nos bolsos, sustentando o peso do estetoscópio no meu pescoço cansado e com as unhas com esmalte descascado que dedilham a mesa enquanto pergunto ao paciente à minha frente: "em que posso te ajudar?" É com essa gravidade de solucionadora de problemas, de saúde dos outros, de DRs eloquentes e deliberativas, de catadora de pega-pegas nas meias da filha que busco a luz, digo, a conta de luz. Bom, se o leitor me conhece para além desses caracteres deve imaginar o fim óbvio dessa narrativa: não achei. Pronto, com esse spoiler posso seguir. No meio da busca, reencontrei alguns devaneios escamoteados pelo fluxo do fazer do dia e me vi diante dos livros em cima da mesinha que vive à cabeceira da minha cama e que recebem pouca ou nenhuma atenção da minha parte, livros e mesinha. Agora, quando deveria estar concentrada na tarefa grave que me propus, encontrar a conta de luz, vejo esses vizinhos de leito com especial interesse. Num primeiro momento, trata-se de descartar a possibilidade que a conta esteja ali, no meio deles, dos livros claro, se deliciando do esconderijo de suas páginas há muito não manipuladas. Mentira deslavada que nem eu, acostumada a me enganar, compro. Enganada, mas completamente seduzida pela presença das brochuras encapadas diante dos meus olhos que numa altura dessas já perderam a gravidade e são só lascívia, agarro com mãos tremulantes de desejo o primeiro livro. Pego nos demais, assim impetuosamente. Olho dentro, aperto as folhas, leio palavras soltas, sôfrega percorro frases, parágrafos, mentalmente lambo cada ideia, citação e já não mais podendo me conter, entregue, gozo. Fim. E a conta de luz? Como disse, não achei. Mas quem liga para luz numa hora dessas?
quinta-feira, 12 de março de 2020
A menina que não escutava sua voz
Era uma vez uma menina que vinha de longe, muito longe, de um passado distante e adormecido que só reaparecia nos assombros das palavras mal ditas. Antiquada nos gestos e insegura no falar, tentava sobreviver a despeito de todos os sons e ruídos do mundo ao redor. Essa menina não escutava. Sua surdez, no entanto, não era ordinária. Flertava com a loucura de tudo escutar, até o que não era dito, menos sua própria voz. Em seus raros momentos de aparição, quase como um fantasma, não assustava, ao contrário, se assustava com quase tudo que havia. O modo com as pessoas se vestiam, do que riam, o que comiam, como se comunicavam. Das vozes dos outros era povoada, algumas mais agudas, outras sussurradas, todas habitavam sua cabecinha mal acabada. Por vezes, em seu retiro, pegava-se rindo sozinha, achava tudo tão pós-moderno, adulto, mas ao mesmo tempo jovem, coisa que nunca foi e nem seria, já que era uma criança antiga. Nem sempre notavam sua presença, ora, a quem queria enganar, nunca notavam-na, e era comum lhe pisarem os pezinhos delicados com tropeções, seu corpinho se contorcia em dor com a voz impaciente de alguns adultos, mas as crianças também sabiam machucá-la. Como na história do Peter que nunca crescia, a menina também nunca envelhecia. O passar dos anos não lhe traziam rugas, cabelos brancos, nem as formas de uma mulher. Era sempre pequenina e pueril, nossa heroína surda. No começo falava, aos borbotões. De tanto não ser ouvida, da indiferença alheia e também da sua própria com seus ouvidos ineptos, foi se calando. Entediada, decidiu recolher-se também dos atos. De que adiantava agir se não se ouvia? Assim, repetia. Sentada comodamente à janela do movimento dos dias, decidiu que iria apenas contemplar, olhar a paisagem intensa da vida. Depois do tédio, veio o sofrimento. Sentia uma energia crescente dentro de si, mas desabilitada do ouvir, falar e fazer, não sabia como mediar tamanha dor. E então, um belo dia, decidiu que iria fazer sem saber. O assento que passara a ser incômodo lhe obrigava a ir, a viver. Nos primeiros dias, achou que pedir, exigir, demandar era mesmo a melhor saída. Resolveu gritar e, para sua surpresa, a voz era audível e muitas pararam para escutá-la. Sentiu-se poderosa, mesmo surda, recuperou sua fala e agora dizia tudo o que dos outros queria: "muitas balas e chocolates. Não! esse não! quero também ser levada na praia, não, nessa não! quero só dormir e você me cuidar, não, assim, não!" Viu-se diante da raiva, da frustração de não lhe servirem como queria e voltou à insatisfação. Com a barriguinha estufada de certezas, olhou ao redor e estava só. Triste e só. Aqueles que responderam à sua fala, cansaram de suas demandas e a deixaram-na lá, com suas coisas e tédio. Não lembra nem como, nem porque, mas foi nesses dias sem sentido que lembrou do barulho do mar e do encanto mágico que sentia no seu corpo o vai e vem das ondas a lhe embalar. Pegou suas pequenas roupinhas que também eram azuis e foi com ele encontrar. Mergulhou, mergulhou, mergulhou. Viu peixinhos, seus olhinhos pequenos arderam com o sal e, por fim, com os olhinhos fechados, que agora faziam companhia para sua boca calada e seus ouvidos tapados, sentiu. A sensação era nova, um corpo meio solto, parecia que ia cair e se afogar. Assustada pensou em sair dali e um abrigo seco procurar. No meio da inquietação uma onda a derrubou e no caos ela se lançou. Um pensamento aflitivo lhe sobressaltou, 'não quero morrer!' e aí desandou a gargalhar. Pela primeira vez escutou sua própria voz e era o som da sua risada. Sim, ela estava lá. A menina olhou para o seu corpo que subitamente ganhava formas e sentia-se como uma borboleta vivendo ali seu transformar. As gargalhadas foram diminuindo de intensidade e o corpo agora era o de uma mulher. Saiu do mar e sentiu o seu quadril rebolar. Sorriu serenamente e sentiu a leveza de ter uma voz e de ter ouvidos para escutar. Poderíamos, nessa altura da história, dizer que a menina, agora mulher viveu feliz para sempre. Não foi isso que aconteceu, felizmente. Para sempre é muito tempo e felicidade é construção cotidiana que rima esforço e distração, assim, numa mesma conexão. Alegre sim, a menina se sentia sempre que se ouvia e, quando não podia, ia ver o mar.
segunda-feira, 2 de março de 2020
Inominável
E, desse amor, o que tenho pra dizer?
Palavras não dão conta, são poucas, rarefeitas silenciam diante do novo, da alegria desse encontro
Acostumadas a repetir, a serem eloquentes diante da repetição, nas suas rezas viciadas, truques já descobertos
Ah, essas palavras que pulam aos borbotões quando domesticadas, sem desejo ou entrega
Agora, gaguejam, claudicam, titubeiam
Não sabem conjugar sujeito, verbo e objeto
Buscam nomes, apelidos, pronomes
Não sabem nomear
Não saem
Elas sofrem por não saber, mas sentem prazer
O prazer da descoberta diante da ausência das sentenças certas
Gozam com o estranho, com o lapso, com a falta
Sucintas, amam e ponto, final.
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