Diante do vazio não sabemos mesmo do que se trata essa intensidade que não nos deixa comer, não nos deixa dormir, não nos deixar ser. Viver é um esforço de se manter de pé e funcionante entre calafrios em dias quentes, náuseas e dores de cabeça. A vida dá essa sensação de se sentir doente, quando a gente está diante do vazio. Percebo com muita clareza, essa clareza branca, tão luminosa que cega (e agora finalmente acho que compreendo Saramago no seu Ensaio) que muito do que a gente diz não faz nenhum sentido. Chamamos de amor a servidão, chamamos de liberdade a repetição, chamamos de alegria a compulsão. Só, claudicante, encontra-se um transeunte. Olhos nos olhos, coração palpitante e o corpo tremulante parecem indicar que se está diante da possibilidade de obliterar o buraco do existir. E aí são juras, criam-se mundos, futuros, todos os sentidos ganham ênfase. Viramos super homens, mulheres maravilhas, dotados de poderes transumanos, visões a longa distância, olfatos apurados e direcionados ao objeto de desejo, todo ouvidos, toques hiperbáricos. Da beleza do encontro vem a ruína dos dias. Diante da grandeza, da infinitude da possibilidade de dançar em par todas, as mais diversas melodias já inventadas, as que estão ainda para se inventar, diante da sublime, extasiante, criativa, profícua (tantos e mais outros atributos, infinitos atributos) da alegria de encontrar um outro e dele e com ele fazer par, nos limitamos. E limitamos o outro. E aí são regras, contratos, cláusulas, hipotecas, contas bancárias, contas telefônicas, números, muitos números e distâncias. O vazio, esse vazio que aqui estava há poucos segundos quando me vi diante dessa tela em branco, o vazio que continua aqui, mas que distraído pelo movimento dos meus dedos e por essas palavras que aqui vão ganhando sentido, sentido que vou construindo na medida em que elas saem de mim e falam comigo, esse vazio que conheço tão bem, esse vazio desconhecido, que está em mim e que também está em você, é faminto. Colocamos esse outro, esse que parece ter nos causado boa impressão (alegria? distração? identificação?) como rolha na boca desse buraco com fome. Devoramos o outro, cada pedacinho, nos deliciamos nesse processo, o buraco parece saciado, preenchido, deliciosa refeição apaziguadora. Aniquilamos o outro. Limitados na tentativa da posse e do controle e assassinos de qualquer expressão da alteridade, colocamos alianças e nos chamamos de casal. Assim, siameses, simbióticos, monstruosos nos dizemos família, inventamos bebês e berços, chocalhos, carrinhos, bonecas. Agregamos mais corpos ao corpo institucional familiar. Criamos um bloco. Um bloco que paga impostos, reza antes de dormir ou vai ao shopping. Tanto faz. Cada ser, cada possibilidade de invenção, cada fagulha criadora é despontencializada em repetição, servidão, compulsão. Corpos autômatos, tristes, zumbis vagueiam pelas ruas, repousam nas camas queen size, mostram o Lucas Neto para as crianças antes de dormir para, no outro dia, repetir. Nessa morte, não há vazio. Ocupado, de boca cheia, cheio de dinheiro (ah, quando há), cheio de afazeres, tarefas, horários, compromissos, listas de mercado, listas de material escolar, listas, todas as listas, ele ronca com os dentes sujos da comida do dia anterior que não foram escovados. De manhã, ocupado e calado engole o café, depois o feijão e no fim do dia uma bebida ou um sedativo para garanti-lo silenciado.
Não há amor nessa captura triste. Não há nenhum amor, nenhuma possibilidade de amar no silenciamento do desejo. Uma vida de traições, traindo todo tempo a si, para servir não ao outro, mas a essa intensidade mortífera que nos aprisiona dentro dos apartamentos, dos escritórios, dos consultórios, dos quartos com janelas antirruído e sem mosquitos, essa vida morta é vazia de amor. Basta, chega. Que as noites vivas sejam insones, que a carne doa, que as batidas do coração revelem a angústia, que haja incômodo, desconforto, desassossego. Que a vida machuque. Não há outra maneira. Que seja o soco na boca do estômago que a Clarice insistia em denunciar e reproduzir. Para que nada, nunca, jamais, seja perfeito. Que falte sempre, para que a alegria e a paz sejam verdadeiras. Para que seja possível amar.